Impassíveis sim, covardes também
Espontânea ou encenada, a indiferença nos protege da invasão exterior. Por supuesto, uma ferramenta de proteção diante de um mundo inteiro visto pela tela do celular nas suas mais encantadoras formas e perversos horrores.
A indiferença é útil em blindar o nosso orgulho tão ínfimo perante o infinito do cosmos. O fascínio pelas coisas brilhantes e sedutoras, simétricas e valiosas que instigam o nosso mais íntimo querer a ambicionar uma espécie de completude junto a esse objeto, coisa, pessoa, sentimento, estética, perturba o nosso tênue equilíbrio. Custosa harmonia que dissolve em qualquer estalo de buzina de carro, e-mail perturbador, cobrança de taxa indevida, pessoa incômoda, as filas (do pão, do caixa, do bandejão, do trânsito, da lotérica (mas acho que lá jovem nem vai). Acontecimentos comezinhos que desgastam a boa vontade humana e corroem, pouco a pouco, um intuito simples de modesta paz na rotina. Mas lá vem outra vez, a vontade perniciosa de querer e não ter. A vontade perniciosa de querer e já admitir que não se pode ter. A vontade perniciosa de querer e tornar-se indiferente àquilo desejado e não tê-lo, refreando a nossa (suposta) impotência. Pronto, está resolvido. Entre o querer e a mera probabilidade de não poder ter é melhor ser indiferente de antemão. Assunto encerrado. Porém, embora resolvido e ponto final, o anseio ainda palpita por dentro, roubando o sono e azedando humores, revirando-se no estômago e na garganta provocando um refluxo insuportável, haja omeprazol! Para quem segue esse caminho da encruzilhada, habemos a indiferença fingida. Encontramos o exemplo mais batido no campo amoroso, que pra gente funciona igual placebo: engana só quem faz uso, mesmo.
A harmonia segue seu curso, meio mutilada, um tanto capenga pela desistência do magnífico, mas decidida a deixar as águas rolarem o seu curso de apatia sob rédeas curtas. Mas a tela capta tudo com sua função escópica onipotente, onipresente & onisciente. O brutal do mundo aparece na sua mais potente crueldade devastando pessoas e suas casinhas, a vida de uma criança, um cotidiano inteiro quebrado pela ação policial que impede o deslocamento normal de um bairro inteiro debaixo de uma bala que estoura o vidro da janela. Nesse mundo coberto de maldade, o inferno está logo ali. Pra alguns esse inferno é mais presente e a indiferença eutanasia a culpa que corrói os que não estão (ainda) naquela pequena esfera de acontecimentos atrozes, mas não nos enganemos, o inferno vem para todos quando apenas uma pequena parcela pode usufruir da tranquilidade do mundo e manter uma harmonia de verdade, uma tranquilidade imperturbável.
Faz sentido a indiferença ser um pecado em uma sociedade que prefere lenificar as expectativas para não ferir o próprio ego e lidar com a possível derrota da tentativa. No fundo, se trata de mais uma armadilha de escape do mundo e de nós mesmos. Vemos o indizível acontecer, seja ele bom ou ruim, e seguimos impassíveis, indiferentes à vida.
Agosto
Neste mês de agosto, a indiferença era tudo o que não queríamos de vocês. No poema Endógeno, o eu-lírico risca nos versos a indiferença presente em seus sentimentos e o real indiferente a ele mesmo. No texto Campampante, o autor nos leva numa jornada fascinante de atmosfera rica e contemplativa, explorando o sentimento de pertencimento. Tia Auxiliadora Responde evoca a nostalgia dos programas e colunas de respostas amorosas com uma apresentadora de postura enérgica, cheia de humor e sinceridade. No poema Presenças, o diálogo com o tema da indiferença é sutil e eficaz, revelando um contraste entre o sublime e o desconhecido. Como numa conversa corriqueira, Indiferença, em tom de sabedoria, traz um conselho acerca da oposição amor versus indiferença. Tem lugar pra mim explora o desconforto e a frustração que se transvestem, no final do dia, em indiferença.
Kaio Moreira, ilustrador e diretor de arte, assina a capa da edição de agosto com suas cores e traços únicos, dando vida ao nosso gato indiferente. Confira seu trabalho em: @okaiomoreira
Textos nesta edição
Fala memo!
Eai, td certo? A Nossa Língua quer trocar ideia, mas pra esse papo acontecer cê precisa chegar junto também. Se a revista será feita das inúmeras vozes (dissonantes) da nossa querida Letras, sua presença é vital!
Então, pensa com carinho! Manda no nosso forms aquela rima guardada na gaveta, aquele texto top que cê quer ver o pessoal discutindo, uma análise de um filme mucho loco, um poema esquecido nas notas do cel… Bota pra circular as ideias! Não é tão difícil assim, vai.
Vem que a gente tá te esperando, beletrista!
Equipe editorial
Alyson Freitas - Revisão textual
Bruna Silva - Revisão literária
Cibele M Brotto - Editoração
Colaboração:
Attílio Braghetto
Guilherme Faber
Livia Bernardes