O sul da Itália e a Madonna

POR

Cibele M Brotto

Pode parecer estranho um texto tipo uma resenha sobre uma região, mas é verdade que conhecer a Itália é visitar os resquícios históricos da cultura ocidental, como numa grande exposição a céu aberto. Dentre tantas construções, ícones e símbolos, me chamou a atenção uma em especial: a constante reprodução da imagem da Madonna. O que isso tem a ver com o sul da Itália e com o amor, talvez eu consiga responder ao longo deste texto.

Tive a oportunidade de estar por lá esse ano durante um tempo. Para aqueles que se acham veramente italianos porque têm sobrenome, já aviso que visitar os bairros do Bixiga ou da Mooca não é o mesmo que estar na Itália lidando com a real dinâmica cultural desse país. Entre muitos choques culturais, o maior é o humor desse povo. Pensa numa galera bruta e estúpida… Mas tem bastante pizza e eles curtem os mesmos sabores em toda a bota. São tradicionais. Inclusive, essa é uma boa palavra para introduzir a figura da Madonna nessa história. A Virgem Maria é chamada de Madonna por lá, ela é a mãe de Jesus. E toda essa volta pra dizer que a Madonna é mãe, assim como eu. E o que poderia existir em comum entre nós duas? De santa eu não tenho nada. Essa história de separar mulher entre “santa” e “puta” também me incomoda. Principalmente porque, no meu caso, me jogariam no lado das “santas”. Lado mais tedioso não existiria igual. Embora, é claro, quem é mãe sabe dos vários cortes de asas, da adaptação radical na criação de uma criança e da entrega sem precedentes nesse processo. Posso dizer que renasci. Trago a minha consciência rebelde e impregnada de liberdade, mas em uma forma menos volátil, agora voltada para um legado.

Nas ruas eu vejo a Virgem carregando a criança em seu colo e zelando por ela. Seu olhar é doce e a sua presença é serena, bem diferente da postura dos italianos.

Até que eu tenho alguma coisa da Virgem, um olhar atencioso, um toque acolhedor e um coração cheio de amor pela minha criança. O amor que eu falo é o do gênero da pura devoção. Por isso nem todo mundo quer e está certo em pensar duas vezes antes de aceitar esse compromisso de vida. Ter uma criança é ver seu coração andando por aí. Sabe aquela história de que reza de mãe guarda filho? É verdadeira. Aqui já deu pra entender que ter uma criança não é uma das tarefas mais fáceis ou tranquilas. Pelo contrário, é exaustiva e desafiadora. Nosso limite é quebrado inúmeras vezes, nosso ego desfalecido em vários pedaços, nosso tempo nunca mais gira em torno da nossa própria órbita, mas da família. Porque sim, um adulto responsável e uma criança já é uma família. A Itália gosta de famílias, mas só a tradicional, qualquer outra, não gosta não. Eu gosto de qualquer família, bom exemplo pra mim é “Mamma Roma”. Eu tenho a ver com ela. E ela tem a ver com a Madonna. Eles gostando ou não, nós compartilhamos características e ninguém pode tirar isso da gente. Somos mães e sempre seremos. Essa é uma qualidade excepcional de quem é mãe: não há a possibilidade de renúncia. “A filha perdida” aos poucos desvela essa verdade incômoda e dolorosa nas paisagens da costa napolitana.

E “ser mãe”, pra mim, é um ser e estar no amor. Nesse sentido, me parece que a construção desse sentimento entre mãe e criança é a explicação para essa doação. O paradoxo do amor parece repousar justamente nesse impasse entre uma entrega desproporcionalmente injusta, mas ao mesmo tempo, honesta. Fundamentalmente franca a ponto de colocar abaixo qualquer defesa. Perturbadora & fascinante. Nos mantém vivos por dentro ao custo de indomáveis batimentos cardíacos.

Quando comecei a escrever esse texto, nem eu sabia direito qual seria o seu mote. Encare como um ensaio essa tentativa que não almeja por respostas. Posso concluir, apenas, que a intuição sobre essa sobreposição de figuras, culturas e tradições veio à tona como um fio de carretel de impressões desencadeadas a partir dessa região em que pude perceber algumas pistas que envolvem a conduta dos italianos, da maternidade e do amor.