Afetos gestam sentidos
Em busca de um signo comum entre a nossa comunidade diversa, elegemos os sentimentos como norteadores de nossas edições, representando códigos aptos para traduzirem as várias vozes presentes na Letras. Nossos privilegiados componentes sensoriais abrem caminho ao incitar a cognição a refletir e interpretar a literatura presente em nossa força humana motriz: os afetos - mas não serão só os engomadinhos a passarem por nossa lente, os indesejados têm nosso interesse.
Abril
Passado o dilúvio veraneio, não aquele devastador que desabrigou e levou os inocentes de São Sebastião, propiciado pela ganância especulativa que privilegia a elite estrangeira nas nossas praias em detrimento dos caiçaras da Baleia. Evocamos as águas capazes de purificar nossos corpos com poder restaurador, de esperança. O líquido nutritivo da seiva, água que acalma no banho e na sede. É preciso humanar o olhar e deixar fluir os sentimentos, deixar a água banhar os nossos sentidos, molhar o nosso corpo e irrigar as nossas veias. Abrir veredas.
Ao povo, uma singela homenagem com nossos votos por um sereno de orvalho salutar, capaz de gestar. Aos exploradores, o enxurro.
Na edição de abril da Nossa Língua, preparamos o início do nosso percurso sentimental de leitura com a inspiração. Para começar, qual a sensação de uma intervenção inspiradora? Conferimos em “delírio transversal” um ensaio sobre essa repercussão íntima. Seguimos com “a uma musa” e o depois da inspiração. Em seguida, o conto “memórias de uma vida à provinciana” versa sobre a aridez que nos deparamos com a falta de sua presença e, depois, seu desfalecimento completo em “a morte do sol”. O contraste acerca das fontes inspirativas se consolida em “respirando a morte, refletindo inspiração”, para que sua força vital seja recuperada na resenha do filme “Vá e Veja”.
Delírio transversal
Eu brigo com ela todo dia. Me faz pequena seu tamanho. Ela sussurra frases entrecortadas, mas eu nunca consigo entender as suas demandas. Aliás, eu tento dar conta de tudo o que ela me pede, afinal, não sei viver sem ela. Tampouco com ela. Eu juro, tentei decifrar seus apelos e só acabo me depreciando diante das suas palavras sorrateiras. No fundo, ela ainda vai me destruir. Eu passo horas acordada. Tem dias antes de dormir que eu penso finalmente ter a resposta pra conquistar seu fascínio. Mas é em vão. Ao amanhecer, eu penso em tudo aquilo que me empolgou e sinto vergonha de um dia ter cogitado tamanhas tolices…
Tá bom que é fácil assim de ter você, né? Até parece.
Quando penso que te entrelacei nos dedos, cê desliza por entre os lençóis e, em direção à janela, se esvai noite adentro. Eu não sou nada perto de você. Rastejo no lastro das suas pistas, indícios de que você se fez presente tão perto, mas sempre elusiva. Evasiva. Fugaz. Sua chama é como a de um fósforo: forte e luminosa faísca, mas logo se cansa de dançar em seu eixo, e, aos poucos, desgostosa, se evanesce em fumaça. Atada a você, sua exibição não me afasta, sou cativa da tua inconstante presença. Quando menos espero, vem e sussurra em meus ouvidos desejos quentes que podem me salvar da escuridão e da monotonia, reanimando o meu corpo diante de um mundo árido sem sentido. Você também não me deixa.
Então, vem. Mesmo envergonhada, eu vou me adaptar. Prometo entregar-me ao seu feitiço sem duvidar do seu poder. Sem ter orgulho pra ensurdecer a sua delicadeza. Deixa, eu vou escutar-te nessa linguagem que eu só posso entrever sensações. Eu sei, seu dizer é pleno, eu que não sou sensível para captar. Meus sentidos são brutos, é preciso apaziguá-los. Vou tranquilizar minha percepção medrosa diante da dúvida que irrompe com o seu jeito impetuoso de vir a mim. Existe uma batalha na minha cabeça, mas essa voz de censura eu não vou escutar, a inquisidora da tua soberania. Não, vai ser a sua a cantar em meus ouvidos. Me dá tempo, inspiração.
Cibele M Brotto - Equipe Editorial
A uma musa
Você faz um bom papel como musa
Quando me deixa perdido e confuso,
Sem ideia do que fazer, que uso
Dar à imaginação, tão reclusa.
Minha mente com certeza recusa
Tirar sua imagem dela, um repouso
Ela era. No entanto, ocluso,
Seu amor fez minha alegria exclusa
Quão escusas são agora as memórias
E escuro o ambiente de então
— O meu próprio paraíso perdido.
Quão impuras são todas as histórias
De amor. Quando tornadas reais são
Transformadas em amor corrompido.
Vinicius Lima
Memórias de uma vida à provinciana
O poeta olhou pela janela, o tempo era branco e as palavras lhe fugiam. A capital morria quieta na segunda-feira, três e trinta e cinco da manhã, o celular revelava tímido. O horário acendeu agudo na tela, perdurando com ar de véspera até colorir-se de preto novamente. Retornou o olhar para o computador, a barra de digitação piscava questionando por quê?
por que
digitou esperançoso com o início, ritualístico esperando inspiração como homem-suicida-para-raios em meio à tempestade, sem chegar a lugar algum. Eram tempos difíceis, decerto. Não se sentava ao computador há seis meses, o governo matava às ruas desgovernado, se o sangue não brotava de suas mãos com certeza as perpassava. O emprego cortara um terço dos funcionários, dentre seus amigos quase todos, e esperava si mesmo a dor da faca, já lhe parecendo tão inevitável que encontrou-se assim, acordado às vinte e cinco para as quatro, sem perspectiva alguma de levantar para o dia de trabalho.
O namorado dormia na cama, o peito descoberto, respirando. Respirava solto e leve, às vezes agitado como um pombinho batendo as asas para levantar voo, mas logo abrandava, fazia-se pacífico o sono de novo. Há quanto tempo realmente não dormia? Certamente desde a infância, se um dia dormiu bem foi depois da primeira vez com Felipe. As seguintes também foram boas, mas poeta amador que era, perdia-se na magia-feita das primeiras coisas, o meio sempre meio insosso, eternamente em ânsia saudosa do viver-primeiro e lamento do eventual último. Felipe batia os olhos frementes, sonhando. Sonhava estranho, sem nexo como se não sonhasse. Perguntou-lhe uma vez:
Amor, com o que tu sonhas?
Felipe fitou a parede, vasculhando em si:
Não sei, às vezes eu penso que não sonho, só penso mesmo. Durmo e penso. Sobre o trabalho, o jornal cedo, o que farei amanhã pra janta, o gato passeando na casa quebrando tudo (ri) Mas quando acordo, e pensando agora, vejo que em tudo é você
O poeta sorriu, avermelhando-se todo — Felipe falava bonito. Não sonhava com Felipe, percebeu de repente. Seus sonhos eram febris e aleatórios, um poço alegórico tão fundo que suspeitava neles haver segredo revelador de toda uma vida. Já tentara compreendê-los, mas perdia-se no meio, frustrado. Sem inspiração onírica, quanto menos a cotidiana, sua poesia ficou rala, pobre em substância. Os pastos, o vento, a enxurrada de amor seguida da ferida maior que o mundo, nada cabia. Lia os grandes e nada deles comunicava a poesia viva e arfando, proletária. A vida doía simples e citadina, Felipe deitado ao seu lado há seis anos, respirando encantado, mas tão igual, enquanto o noticiário fala de morte, “meu deus, chega! quanta desgraça! nunca supera o assunto”, alguém comenta anônimo na Internet, mas a verdade é que supera fácil demais, um, dois segundos e próxima manchete, dez mil mais outros, amontoando. Matada, morrida, acidental, adoecida — morte. O poeta olhou pela janela, o tempo era branco… E era, gritando por tinta vibrante e viva que não fosse sangue de seu povo, sangue lavado às forças da tela em nome d’O ESQUECIMENTO.
Eu lembro — lembro,
escreveu sem pensar ou prevê-lo, e era solitário. Era cinema mudo na era dos blockbusters, era chorar sem lágrimas, sem murchar o rosto e sem sorrir fingido pois nem isso se consegue extrair do próprio rosto traumatizado: eu lembro. Quis levantar da cadeira e acordar Felipe, dizendo:
Eu lembro, eu lembro, eu lembro. O mundo se quebrando em lágrimas, sangue, bosta e fome. Merda e fome, Felipe! A revolução tarda, a cada hora mais se mata e tudo que se pode fazer
é lembrar? — Mas eu lembro.
Mas a palavra era forte demais, emperrava na garganta e se desfazia na língua, muda.
(o tempo voa e passa)
O sol nasce, lento e discreto em meio à poeira. A cidade vai acordando aos poucos, logo Felipe acorda e vai trabalhar, o poeta também, não querendo mas vai, passa o café e come o pão e vai. O primeiro carro buzina, quebrando o silêncio. Quase atropela o poeta, que se benze, pega o metrô e segue desgrenhado. O chefe reclamará do atraso, vagabundo… Ele está na linha. Será demitido? Não importa. O sol nasce.
Pedro Santos
A morte do Sol
Como uma pérola pálida e fria,
pendia branca na noite mais funda
a lua triste infeliz e sombria.
Sentia viva a saudade que aflua
por uma chama que não mais fulgia.
Bebia agora das águas soturnas
as turvas dores, disformes e esguias.
Aflita, a lua escondeu se na bruma,
noturna fuga de melancolia.
Vivia em prantos de lágrimas cruas,
profundas fontes de vãs alegrias.
Queria mais uma vez a doçura.
As juras ébrias de amor e lascívia.
Floridas ruas de cores e plumas,
luxúrias ternas em epifania.
Havia algum dia amado em loucura
nas curvas tortas, enlaces da vida?
Jazia morto o Sol negro na tumba.
E nunca mais outra estrela amaria
Larissa Shiromoto
Respirando morte, refletindo inspirações
Se os estudos fisiológicos conseguem afirmar a inspiração como condicionante de existência, seria muito ousado se eu utilizasse, como análogo, a inspiração no contexto de estímulo criativo?
Uma fetichização justa do processo sináptico, as particularidades do corpo abstrato, denominado “inspiração”, já permearam reflexões de todos os seres humanos. O conceito que hoje associamos à paixão, às alegrias e ao amor à vida, ao longo da história, já fora conduzido por temas sombrios; devaneios inspirativos.
Por volta de 370 a.C. Platão já registrava sua tese acerca da inspiração. Em Fedro enquadrou-se como: “Um terceiro tipo de possessão e delírio, o das Musas, depois de pegar a alma tenra e inviolada, despertando-a e transportando-a em cantos e nas demais produções poéticas, milhares de feitos antigos ordenados, educa os que vem depois; enquanto aquele que, sem o delírio das Musas, chega à porta da poesia convicto de que pela técnica será um poeta perfeito, é um malogrado ele próprio e sua poesia de quem está em são juízo é pela dos que deliram eclipsada.”
Apesar das correlações divinas que fundamentaram os primórdios do pensamento europeu, o inspirar-se é atingido por diversos meios; a inclinação humana pela busca e compreensão de sensações como medo, asco e angústia; transborda nas produções literárias como ótima fonte-delírio.
Um tema central das inspirações bebidas no receio, é a morte. Consequência da vida, aperta e instiga os corações que já bateram, e deixa como recado um poço de deliberações. Parafraseando Antonio Candido, uma das poucas memórias restantes de IEL I, me faz pensar que assim como a literatura, a morte toma espaço ao gerar estranhamento, como a ordenação do discurso literário; estranhamento esse que, por contraste, gera reflexão. O que me intui validar a presença intensa dessa temática como inspiração.
Se por um lado, a morte entra como temática comum nas produções, por outro, faz-nos pensar: de que morte estamos falando?
Tentei buscar as marcas históricas do pensamento humano. No Mundo Antigo, a concepção de morrer se conecta com a religião, a educação, a construção de uma circunvolução da alma, eterna, geradora de movimento, e de 10 vidas completas para atingir o plano divino. O que lhe garantiria a vida eterna era a glória, Kleos, vivo na história dos grandes feitos.
A Idade Média se calca no cristianismo e seus instrumentos de controle, representados como punição divina aos pecadores. A Igreja não perdeu tempo, e como uma startup neoliberal inventou a comercialização de uma suposta salvação. No mundo atual, esse milagre se faz com aspiradores de pó automáticos; na Idade Média, com a venda de indulgências. Por uma boa quantia, garantia-se um pedacinho no céu.
Possuído pelo espírito acadêmico, não pude deixar de colocar essa definição precisa de Franklin Santos em “Perspectivas Histórico-Culturais da Morte”: “[…] uma figura desfigurada, pesada, de horror, com um significado de deterioração, sendo muito frequentemente, representada por um esqueleto segurando uma foice.” A Igreja detinha o uso da linguagem, e a monopolizava. Proibição de leitura, alta taxa de analfabetismo e uma forte imposição teocrática; podaram consideravelmente os lençóis freáticos da inspiração no âmbito literário. Após o Iluminismo e o declínio religioso, o século XIX introduz uma perspectiva “Freud explica” dos seres e consequentemente outra visão de morte, desconectada da pós-vida.
Nesse ponto, as conexões com o morrer se fortalecem, as artes transbordam reflexões acerca do tema - e temos uma maior presença nos processos inspirativos. Tolstói, escritor russo do séc. XIX, reverbera e explora esse medo de forma marcante, estruturando uma inspiração obscura sobre uma concepção social estabelecida - como na obra “A morte de Ivan Illitch”. Tolstói propõe, nesse conto, uma perspectiva peculiar: morte como sinônimo do processo. Morrer é a angústia, o medo e a solidão de perder a vida gradualmente, enquanto a racionalização tenta processar a inexistência - e lida com os feitos passados. O falecimento físico torna-se parte da pós-morte; mas em outro processo, o alívio da alma.
A chama da vida se apaga, as reflexões acerca dela permanecem. A morte rompe a barreira da existência; a inspiração, nos remete à vida.
Guilherme Faber - Equipe editorial
Resenha do filme “Vá e Veja” (1985)
Na última mostra do Cinusp, nomeada de “Para Gostar de Cinema”, foi exibido um filme de extrema importância, importante como filme e importante para um cinema anti-fascista. O filme em questão se trata da obra-prima soviética “ Vá e Veja” ( Idi I Smotri,1985) dirigida pelo cineasta soviético Elem Klimov, o longa fala da vivência de um garoto durante a ocupação nazista na Bielorússia, em suma, é uma exploração do horror e da barbárie da guerra sob a ótica de uma criança, o protagonista Florya.
Num primeiro momento, o filme até começa com uma abordagem mais sóbria no desenvolvimento do Florya, apresentando ele ao espectador e traçando sua trajetória ao se unir a um grupo guerrilheiro e deixar a esperança aflorar no personagem, ele entende que pode ajudar seu país contra os nazistas e soa até um pouco bobo como crê nisso, parte da inocência dele, e tem sua relação com a personagem Glasha que traz uma leveza pra ele nos momentos mais contemplativos do longa antes da queda para o horror. Na medida que ele entende-se como parte daquele meio ele se distancia de sua inocência (Vá).
Assim, depois de ter a primeira quebra de expectativa do que é a guerra, o filme faz uma introspecção para as experiências traumáticas de Florya, é essencial nesses momentos o uso da técnica, sempre caminhando pra uma espécie de virtuosismo técnico, porém sem um propósito contemplativo romantizador mas mais ligado ao choque. É um momento do filme que Florya não tem mais controle sobre suas ações, é quase como a passividade do espectador de cinema, já que ele só observa a barbárie (Veja). Um fator que agrega ao clima aterrador do longa é o uso do som, em um momento o protagonista se encontra quase surdo por conta da explosão de uma granada e os ecos e barulhos reproduzidos aumentam a tensão e provocam uma agonia extrema.
Agora que a obra assumiu por completo o “terror” como um sub gênero narrativo do seu enredo, ela vai apelar para uma exposição gráfica nem um pouco gratuita mas sempre muito incômoda ( e acredite, nada disso é algo negativo). É um ponto extremamente importante da obra porque ela entrega um realismo tão absurdo de impactante e seu maior mérito é não banalizar o tema com sacadinhas ou alívios de qualquer natureza, e nunca cai na relação tóxica cinematográfica de “choque pelo choque”, a cena do incêndio no celeiro exemplifica bem isso.
O desfecho é o melhor ato do filme, nesse momento da narrativa o personagem de Florya que é uma criança de 12 anos se encontra com a aparência totalmente envelhecida e sofrida, com rugas, linhas de expressão e com o cabelo grisalho, e nós acompanhamos essa deterioração. Uma das coisas que mais gosto nessa obra é como representa os nazistas de uma maneira extremamente ridicularizante, eles não são somente homens frios que seguem ordens de uma entidade que é superior, mas aqui eles sentem prazer com o que fazem e suas ações são realizadas por eles com toda vontade, são animais, nada mais que isso. A cena final é uma síntese do tom do filme, a mensagem não pode ficar mais clara que isso, o garoto alveja um quadro de Hitler, e o filme já havia exposto isso quando o povo construiu um boneco de Hitler para escarnecer dele e saber onde direcionar seu ódio, de novo, o fator anti-fascista da obra.
Este longa é um marco do cinema de guerra e talvez seja o melhor deles, expõe sua mensagem e não fetichiza o tema, o filme de Klimov é um clássico necessário que traz um ponto de vista fora do imperialismo estadunidense e reinventa técnicas do gênero. Vocês podem ver o filme no youtube, por favor assistam. E vejam também os filmes da esposa de Klimov, a cineasta Larisa Shepitko, recomendo A Ascensão.
Isac Levi
Fala memo!
Eai, td certo? A Nossa Língua quer trocar ideia, mas pra esse papo acontecer cê precisa chegar junto também. Se a revista será feita das inúmeras vozes (dissonantes) da nossa querida Letras, sua presença é vital: seja enviando uma intervenção, comentando as edições/matérias ou dando aquela puxada de orelha. A gente publica na próxima edição!
Então, pensa com carinho! Manda no nosso insta aquela rima guardada na gaveta, aquele texto top que cê quer ver o pessoal discutindo, uma análise de um filme mucho loco, um poema esquecido nas notas do cel… Ou já logo lançando a braba sobre algum assunto publicado aqui que cê discordou. Bota pra circular as ideias! Não é tão difícil assim, vai.
Vem que a gente tá te esperando, beletrista!