Cai-Cai

Entrevista sobre literatura infantil com a editora Cai-Cai

outubro 2023

Sobre a editora:

A Cai-Cai é uma editora independente de literatura de infância que nasceu do desejo de abraçar o mundo e suas boas histórias. Com foco nas produções contemporâneas não ocidentais, nosso comprometimento maior está em oferecer um catálogo de qualidade, divertido e culturalmente diverso, capaz de apresentar às crianças brasileiras um repertório fora do eixo colonialista e instigar nelas a curiosidade pelo aprender e pela vastidão do mundo.

1. Qual é a importância da literatura infantil estrangeira no processo educacional?

Para a criança, a literatura é uma das principais fontes de formação de imaginário, assim como a música e as produções audiovisuais. Então quanto mais diversificado e amplo for o acesso de uma criança a produções literárias, mais complexa e enriquecida será essa formação. Aqui no Brasil, infelizmente ainda somos muito apegados às produções do eixo Europa-Estados Unidos, que é fundamentalmente um eixo branco e colonizador. Não é estranho que a gente ainda decore a casa com bonecos de neve no Natal e chame isso de “tradição”? Paulo Freire já dizia que, se a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar o opressor. E é muito comum que brasileiros não se identifiquem com o Sul global, nem mesmo com o restante da América Latina, desejando, em vez disso, um passaporte europeu ou passar férias na Califórnia. Então a proposta da Cai-Cai é justamente oferecer uma alternativa a isso.

2. Quais são as novidades em literatura infantil asiáticas (chinesa, coreana e japonesa)?

Atualmente, o mercado editorial da China só perde, em termos de tamanho e faturamento, para os Estados Unidos. E o segmento infantil é um dos mais importantes nesse sentido, principalmente nas áreas de didáticos, ensino de idioma e livros informativos. Acho interessante destacar que, nesse setor educacional, praticamente todos os livros já são impressos alinhados com toda uma extensão virtual própria, por meio de aplicativos e recursos de áudio, vídeo, realidade aumentada etc. Gadgets que reconhecem textos e leem livros inteiros também são comuns. Quanto às temáticas, estão em alta livros que abordem plantas, insetos e meio ambiente de forma geral, além de outras temáticas humanistas e inclusivas. Também acho importante ressaltar que a China vem investindo fortemente em cultura desde a Abertura, e, no campo literário, o que mais me chama a atenção são os esforços de internacionalizar os autores, com a promoção de intercâmbios e parcerias entre escritores chineses e ilustradores ocidentais, além de bolsas de estudo para que os ilustradores chineses se formem no exterior, sobretudo a partir dos anos 2000, quando a China tardiamente começou a valorizar o livro ilustrado (no sentido de picture book). Diria que a Coreia é um capítulo à parte, por todo o histórico de opressão e dominação que eles sofreram nas primeiras décadas do século XX, quando o Japão proibiu nada menos do que a publicação de livros infantis em coreano (lembra o que falávamos sobre formação de imaginário?), o que forçou o povo coreano a criar toda uma tradição oral própria a fim de proteger e preservar as histórias infantis. Isso influenciou de modo único a produção atual da LIJ coreana, e não por acaso são livros que chamam tanto a nossa atenção, pela potência e pela poética imagética que carregam. Costumo dizer que a LIJ coreana é permeada de silêncios muito significativos, que se expressam pelo gesto e pelo não dizer. Já o Japão podemos dizer que é o mais “ocidentalizado” dos três, no sentido de já ter uma tradição de livro ilustrado (picture book) desde os anos 1970, semelhante ao caso brasileiro, com grandes nomes e grandes clássicos desde então, como Taro Gomi, Shinsuke Yoshitake e Eiko Kadono (a autora do livro que deu origem ao filme O serviço de entregas da Kiki, do estúdio Ghibli).

3. Qual é o histórico e a importância da disseminação cultural no Brasil?

Eu sou editora de formação e sempre trabalhei no mercado editorial. Com o tempo, fui me especializando em literatura infantil e, nesse setor, a gente está acostumado a participar de diferentes feiras internacionais, como a de Bolonha e a de Frankfurt, onde há muita troca entre as editoras. Isso me dava a falsa impressão de conhecer quase tudo do cenário internacional de literatura infantil. Até que, em 2019, visitei a Feira do Livro Infantil de Shanghai e fiquei em choque. De repente, me vi em uma feira internacional onde não conseguia reconhecer nenhuma capa de livro, nenhum personagem, nenhum autor ou nome de editora. Ou seja, eu, que me achava tão entendida de literatura infantil, percebi que ignorava a produção de nada menos do que metade do globo. Foi assim que comecei a pesquisar e a conhecer o que as crianças de países tão diversos quanto China, Índia, Coreia ou Vietnã estavam lendo, quem eram esses autores, quais os temas estão em voga etc. Enfim, percebi que existe uma literatura rica, diversa, de alta qualidade, que não está chegando aqui. E senti que as nossas crianças precisavam ter acesso a isso. Além disso, me dei conta também do quão atrasada e preconceituosa é a nossa visão sobre a China e a Ásia em geral. Shanghai é uma cidade vibrante, fashionista, limpíssima e muito organizada, bem diferente do estereótipo pejorativo que o brasileiro médio ainda faz das cidades chinesas. É engraçado porque, há quinze anos, quando eu estava na graduação, falava-se muito que o mandarim seria a língua do futuro, que a China ultrapassaria os Estados Unidos como potência econômica, que a cidade de Shenzhen se tornaria um polo de inovação etc., e tudo isso me parecia tão distante, tão utópico. A sensação que eu tenho hoje é que esse futuro chegou, e que o Brasil precisa se atualizar se não quiser ficar para trás. Assim, a maioria do nosso catálogo hoje é de literatura infantil chinesa produzida por escritores e ilustradores contemporâneos, mas temos também títulos coreanos, colombianos e, agora, acabamos de publicar nosso primeiro nipo-brasileiro, que é a lenda japonesa da Princesa Kaguya recontada pela cantora brasileira Carol Naine e ilustrada pelo artista nissei Daniel Kondo. Queremos seguir avançando nessa linha não ocidental, agregando ainda mais países e culturas de fora do eixo euro-estadunidense, incluindo a nossa própria produção nacional e latina, que é muito diversa.